Um estranho no bar
Numa noite qualquer, rotineira, Emerson voltava pra casa quando começou a chover. Estava à apenas três quarteirões de sua casa, mas a chuva caiu tão rapidamente que quase não teve tempo de se abrigar sob o telhado de um bar. Enquanto maldizia a chuva, ouviu alguém assobiar e acenar, como se estivesse chamando o garçon. Olhou por cima do ombro e viu que o aceno era pra ele. Era um cara de meia idade, sozinho, com uma garrafa e um único copo sobre a mesa. Emerson pensou:
- Se essa bicha assobiar novamente eu lhe arrebento!
Porém, ao pensar nisso, o estranho falou à meia voz:
- Deixa disso Emerson, eu só quero falar contigo!
Tomado pelo susto, em décimos de segundo, Emerson imaginou que seria alguém que realmente lhe conhecia e que ele não tinha reconhecido. Mas ao virar para o estranho, constatou que realmente era um estranho, o que lhe causou novo susto. E tomado por este fato, perguntou ao estranho:
- De onde me conhece?
- Ah, escuta, eu sei muitas coisas, ok? Senta aí que a gente precisa conversar!
E sentindo aquele pesado olhar vindo do estranho, Emerson imaginou que algo estava errado, e balbuciou:
- Olha, se tem alguma a ver as garrafas que eu quebrei no SuperMercado, eu só derrubei porque uma gorda esbarrou em mim, por isso não paguei!
- Não é nada disso, senta logo!
Como a chuva estava forte e demorava a passar, Emerson resolveu investigar o que estava acontecendo. Puxou uma cadeira e perguntou ao estranho:
- Você é gay? Porque se for, não mexeu com a pessoa certa... Quer dizer, não tenho nada contra, contanto que não pense que tem chance comigo!
- Tu é doido? É claro que eu não sou gay! Eu sou um anjo, entendeu?
- ...Tá querendo apanhar, quer que eu te arrebente, é?
- Calmaê, mané. Eu não sou homossexual! Será que dá pra ouvir?
- Fala! (Baixando os punhos cerrados)
- Bom, eu sou um anjo de verdade, daqueles que você conheceu pelos livros sagrados, ok? Sou um servo do superior, de verdade.
- Você tem dinheiro pra pagar esta bebida?
- ...Tá certo. Pede o que quiser, pode pedir que eu faço!
- Olha, sem problemas, ok? cê continua bebendo que eu vou esperar a chuva passar, em pé!
- Pede, eu não estou tão embriagado, tenta.
- Tá... Então... eu quero um copo com dois gelos, Black Label envelhecido dentro e.... ah o copo tem que estar adornado com o desenho do The Tick!
- Com o que?
- The Tick, um desenho animado que eu achava engraçado. Bom, como você disse que eu podia pedir qualquer coisa, um desenho num copo é bem mais fácil que whisky de boa qualidade num barzinho como esse!
- Pffff... Que besteira, tomaê!
E trazendo a mão debaixo da mesa, colocou sobre ela exatamente o que Emerson tinha pedido. Este ficou estarrecido, olhou pro copo, olhou pro estranho...
- Eu não acredito, quer dizer que eu posso pedir o que quiser?
- Claro que não, eu só fiz isso pra provar quem sou. Tenho cara de Gênio da lâmpada mágica por acaso? Eu sou azul?
- Não, mas... Acho que perdi um bilhete premiado!
- Se liga, mané! Nem tudo é como no cinema, bundão!
- Então deixa eu adivinhar. Deus está cansado de tanta guerra, tanta desunião, tantas mortes por causa de religião, e designou você para procurar alguém com garra e determinação para carregar o poder de levar a palavra a qualquer custo para todas as ovelhas desgarradas. Vou logo avisando, vou fazer do meu jeito, quero licença pra matar quem se meter na frente da palavra.
- Exatamente, e eu resolvi procurar numa cidade pequena de um país do terceiro mundo, e aproveitando que o nosso salvador não estava em casa, pensei em parar para tomar umas cervas por aqui mesmo, até peguei o numero dumas gatinhas... Fala sério, tu lestes Preacher, não foi?
- ...Foi!
- Ahahahahah, vocês são cruéis, cara, cheios de fantasia. E é exatamente isto que me atrai, sabe? eu sei que queres me perguntar o que faço aqui e vou te responder. Eu posso descer à hora que quiser, contanto que não interfira na vida de ninguém. Então, como a noite estava linda e calma, eu aproveitei para dar uma descida e beber alguma coisa. Simples assim, gosto de observar.
- ...Tá, então foi apenas passatempo. E porque resolveu me contar isto tudo? Não está interferindo na minha vida?
- Claro que não! Eu não te tornei rico, nem te entreguei qualquer segredo, você vai continuar com a sua vida e terá de lutar por ela, como qualquer mortal. O fato de você agora saber que existe um ser superior é irrelevante, afinal, muitos acreditam sem nunca terem vivenciado qualquer coisa anormal. Então, você é apenas alguém que sabe da verdade e teve provas disso... ah, e um copo de whisky não mata ninguém.
- Que bom... Então, já que você não pode interferir na vida de ninguém, quer parar de me chamar de mané e de outras gírias imbecis?
- Ahn, desculpe, é que eu aprendi há pouco e achei engraçado.
- Certo, mas enfim, você, assim como os outros, não deveriam estar preocupados com os rumos do mundo? Quer dizer, vocês deveriam estar fazendo alguma coisa para terminar com tantas coisas erradas neste mundo, afinal, vocês o criaram.
- Nós não criamos nada. A história é eterna, assim como o número de seus capítulos, e isto não faz do planeta Terra um marco nesta história. Poeira Cósmica, entende? Os homens tem livre arbítrio, e como direito deles, isto não os acompanha apenas quando lhes convém, mas à todo momento. Do que adiantaria ter dado tanta inteligência para os homens se não lhes deixassemos se valer dela? então é apenas uma questão de consciência. As guerras não vão acabar por ordem superior, nem vamos combater qualquer coisa oriunda de atitudes humanas, então se não entrarem num consenso que beneficie a maioria, as guerras serão eternas... Paciência, nosso trabalho é supervisionar para que as forças paralelas também não influenciem na vida de vocês...
- Paralelas?
- É! Forças quase contrárias à nós. Não somos de todo castos e cheios de pudor. Estas foram palavras e idéias humanas, nem sequer temos sexo, nossa satisfação é diferente, obviamente, pois não procriamos, mas não menos prazerosa. Enfim, nós respeitamos as regras a priori e lutamos contra quem não respeita.
- Tá, já tinha pensado nisto tudo, mas quem disse que vocês deveriam lutar contra isto? O que começou a disputa? O que fez outros como vocês desrespeitarem as regras?
- Não importa se foi escrito ou não, se são ordens, não interessa, também é uma determinação a priori. Pra vocês se entenderem, criaram a idéia de espaço-tempo, pois são mortais. Para nós não. Então é mais do que óbvio que, para entender suas origens, vocês acreditem que o Ser Superior vive em torno de vocês, valorizando a sua existência, e que ele impôs um começo, um meio, e um fim. Mas para nós, foi quase que pré-estabelecido o que devemos fazer. Como chamam, instinto.
- Já interpretaeidessa forma, acho que entendi. Bom, então só temos de nos preocupar com nossos princípios de bem, e prezar pela boa vida para ter a recompensa...
- Já não é meu setor, vais ter que descobrir sozinho. Aliás, isto é um dos segredos...
- Então sobre o quê conversamos? Pensei que estivesse me contando a verdade. Sobre como devemos agir e viver. Isto é uma das maiores dúvidas e causas de tantos conflitos do mundo, e agora vens me dizer que eu deverei passar minha vida toda fazendo algo sob o risco de não merecer nada?
- Você acha que tem bom senso?
- Claro!
- Então, conversamos sobre a verdade. Mais exatamente sobre a sua verdade.
- ...
- Você acredita no que eu te disse. Como disse no princípio, não revelo segredos e nem interfiro na vida dos mortais. Conversamos sobre tua verdade. É nela que tens fé, é nela onde tens teu apoio. Se outra pessoa estivesse à minha frente, a verdade poderia mudar, mas nunca deixa de seguir o caminho correto... Apenas o segue por trilhas diferentes em tantos casos...
- Certo... podes me arranjar a garrafa do Whisky? Já tenho o copo...
E continuaram conversando durante a noite, até a chuva passar e Emerson poder voltar pra casa.